Quando o calendário vira e o ano novo se aproxima, muitos de nós somos tomados por um sentimento de renovação. Fazemos listas, traçamos metas, nos prometemos que, desta vez, tudo será diferente. A sensação de um novo ciclo tem um efeito poderoso sobre nós, como se o simples ato de começar um novo ano fosse uma oportunidade para deixar para trás o que nos incomoda e abraçar novas possibilidades. Mas, sob uma perspectiva psicanalítica, o que explica essa vontade de recomeçar a cada ciclo?
Há muito tempo acredita-se que os seres humanos têm uma necessidade de organizar o tempo e a vida em fases. Isso nos ajuda a criar uma sensação de ordem no caos da realidade. Quando encaramos o início de um novo ano, por exemplo, nossa mente percebe isso como uma chance de “renovar” não apenas o calendário, mas também as próprias experiências emocionais e internas. O recomeço se torna uma maneira simbólica de deixar para trás o que não gostamos e projetar um futuro onde nossos desejos possam se realizar (Freud, 1920).
Essa busca pelo novo, na verdade, está profundamente ligada ao nosso desejo de mudança e transformação. Nosso inconsciente guarda muitas memórias e emoções que, ao longo do tempo, nos pesam, e o início de um ciclo é uma oportunidade de aliviar essa carga. É como se estivéssemos, a cada novo ano, buscando uma espécie de “limpeza”. Assim como gostamos de arrumar a casa, a mente vê esses novos começos como uma oportunidade para reorganizar e refrescar o que está guardado internamente (Freud, 1915).
O fascínio pelos novos ciclos também pode ser explicado pelo que Freud chamou de busca pelo prazer e pela satisfação. Quando o ano se encerra, nossas falhas, dificuldades e arrependimentos tendem a surgir na memória. Esses pensamentos podem nos frustrar, pois lembram das coisas que não alcançamos. O início de um novo ciclo, no entanto, representa uma página em branco — uma chance de corrigir os erros do passado e buscar novamente o que tanto desejamos. Esse recomeço é uma maneira de projetar uma versão ideal de nós mesmos, uma versão que ainda não cometeu erros e está pronta para perseguir os próprios sonhos (Freud, 1930).
Outro aspecto interessante é que o desejo de recomeçar está ligado ao medo da estagnação. O ser humano tem uma necessidade constante de evoluir e crescer. Quando sentimos que a vida está “parada” ou que não estamos avançando, surge uma ansiedade. O início de um novo ciclo nos ajuda a lidar com essa ansiedade, oferecendo a ilusão de que o passado ficou para trás e que o presente está cheio de novas oportunidades para nos reinventarmos (Freud, 1923).
Ao final de cada ano, olhamos para trás e avaliamos nossos acertos e tropeços, e é natural que surja a vontade de fazer diferente. Esse é o verdadeiro poder dos novos ciclos: eles nos permitem sonhar, reavaliar e, principalmente, nos dão um ponto de partida para sermos melhores, mais conscientes e mais próximos daquilo que desejamos ser.
A psicanálise nos ensina que o recomeço é um desejo profundo de renovação, algo que nos mantém motivados e leves para enfrentar a complexidade da vida. O novo ano, então, é mais do que uma data no calendário, ele simboliza a possibilidade de nos reinventarmos.
Referências
Freud, S. (1920). Beyond the Pleasure Principle. The Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud.
Freud, S. (1915). Instincts and Their Vicissitudes. The Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud.
Freud, S. (1923). The Ego and the Id. The Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud.
Freud, S. (1930). Civilization and Its Discontents. The Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud.
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