Como as Lembranças da Infância São Filtradas pelo Inconsciente: O Que Esquecemos e O Que Lembramos, e Por Quê
As lembranças da infância têm um papel fundamental na construção de quem somos, mas curiosamente, muitas vezes nos vemos presos em um jogo de memória seletiva. Lembramos de momentos específicos, fragmentos de experiências que parecem aleatórios, enquanto esquecemos outros episódios que, teoricamente, poderiam ser mais marcantes. O que define o que guardamos e o que deixamos para trás? Na visão psicanalítica, as lembranças da infância não são apenas registros neutros de eventos, mas são profundamente filtradas pelo inconsciente.
O inconsciente é como um guardião das memórias. Ele seleciona o que pode ser lembrado e o que deve ser esquecido, com base em nossos desejos, medos e conflitos internos. Para Freud, não se trata de uma escolha consciente. Muito do que esquecemos está relacionado ao que, em algum nível, nos causaria desconforto ou dor se fosse plenamente acessível à nossa consciência (Freud, 1899).
Isso explica por que muitas das nossas lembranças de infância são distorcidas ou incompletas. Momentos que nos trouxeram prazer ou felicidade costumam ser preservados com mais clareza, enquanto as experiências que nos causaram angústia ou confusão podem ser enterradas mais profundamente no inconsciente. É como se nossa mente usasse um filtro emocional para proteger nossa psique de lembranças dolorosas, uma forma de nos manter em equilíbrio, ao menos na superfície.
Freud também observou que aquilo que esquecemos não desaparece por completo. Pelo contrário, essas lembranças "esquecidas" continuam influenciando nossos comportamentos e sentimentos de maneira sutil. O inconsciente guarda essas memórias e, muitas vezes, elas reaparecem de maneiras indiretas, como em sonhos, fantasias ou até sintomas físicos. Quando uma experiência de infância é muito intensa ou difícil de processar, nossa mente pode optar por "esquecê-la", mas ela continua a exercer influência sobre nós, como uma sombra invisível (Freud, 1900).
Outra questão interessante é que o que lembramos da infância muitas vezes não é exatamente como aconteceu. As memórias podem ser reconstruídas ao longo do tempo, sendo influenciadas por nossas experiências e emoções atuais. Algo que parecia trivial na infância pode ganhar um significado maior na vida adulta, dependendo do que estamos vivendo. Da mesma forma, eventos que foram importantes podem ser minimizados ou transformados em nossa memória. Freud chamou isso de "processo de reconstrução", onde nossas lembranças são constantemente ajustadas pelo inconsciente para se adaptarem às nossas necessidades emocionais (Freud, 1914).
Então, por que lembramos de algumas coisas e esquecemos outras? Porque, em última análise, nossas lembranças não são apenas registros dos fatos, mas reflexos de como nosso inconsciente interpreta o mundo. Lembramos do que faz sentido emocionalmente, do que nos ajuda a construir uma narrativa sobre quem somos e onde estamos. E o que esquecemos, muitas vezes, é aquilo que nossa mente considera perigoso demais para ser enfrentado diretamente.
Entender esse processo pode nos ajudar a ter mais compaixão por nós mesmos. As lacunas em nossas memórias não são falhas; são formas de proteção. E as lembranças que carregamos, por mais fragmentadas que sejam, são parte essencial da história que estamos sempre contando sobre nós mesmos.
Referências
Freud, S. (1899). The Interpretation of Dreams. The Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud.
Freud, S. (1900). The Interpretation of Dreams. The Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud.
Freud, S. (1914). Remembering, Repeating, and Working-Through. The Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud.
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